sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Onco Pediatria

Estava num plantão, mais um deles. Já se tornara habitual, o hospital tornou-se meu lar. Mais uma noite com as crianças, mesmo com todo esse cansaço elas me fazem muito bem.
Cuidar. Meu verbo favorito. Protegê-las, minha melhor ação.
Todas elas já estavam dormindo, o tratamento não é fácil mesmo que a maioria delas tenha vitalidade e vontade de seguir. É cansativo, morre uma parte delas e a esperança se desgasta mas elas possuem estrelinhas, muitas até.
Todas dormiam, menos a novata que me cativou. Ela se chamava Emily, tinha a pele alva, era loira e tinha belos olhos azuis e então fui ao encontro dela. Preocupava-se muito com minhas crianças, talvez ela tivesse dor. Ao ir de encontro a ela, a mesma fingiu dormir e eu a indaguei. Está tudo bem? Ela balançou a cabeça fazendo que não e abraçou-me fortemente. Estava com saudades de casa.
O câncer de Emily estava em estágio avançado, mas eu a admirava por seguir o tratamento e sempre animar as outras crianças. Seu sorriso era cativante e fazia com que todos se animassem para a 'quimio', que era o pesadelo de muitas delas. Eu queria ajudar aquela menina, eu precisava salvá-la e de certo que daria a minha vida por um de meus pacientes. Abracei-a até que a mesma dormisse, mas antes disso minha voz rogou algumas cantigas de ninar.
Eu aprendia cada vez mais com as crianças, elas sorriam enquanto eu tinha vontade de chorar por vezes. Elas tinham uma força descomunal.
Para minha surpresa a doença de 'Mily', como as crianças a chamavam, tinha estacionado e ela parecia muito melhor. A menina e seu ursinho, inseparáveis. Ele tinha sempre uma tira de curativo, assim como ela. Quando ela tinha que fazer a extração de líquido da medula, eu encaminhava o ursinho a maca ao lado da dela. Ela não poderia se mexer, e ficava paradinha como ele.
Seus olhos azuis me encantavam, tinham algum mistério. Eles sorriam pra mim. Ela tinha uma luz, e então eu passei a acreditar que existiam anjos e ela era um dos espíritos de luz daquele lugar. Era forte, negava a dor e eu era mais dependente do abraço dela a cada dia. Acho que eu aprendia muito com ela, acho que aprendi muito com ela.
Todos os dias quando já estava pra ir embora do hospital, eu ia ao quarto das crianças contar histórias e dar um beijo de boa noite em cada uma delas. A maioria já não tinha mais cabelo, mas gostavam de um cafuné. Eu não tinha filhos, mas considerava-os como meus filhos. Eu ia pra casa exausta, tomava um banho, geralmente não conseguia dormir porque queria estudar o caso de cada criança. Uma generosa caneca de café era minha companhia por horas, eu não tinha ninguém. Eu queria a cura de cada um dos pimpolhos, queria que eles sofressem menos e esquecia que me faltava algo, ou alguém. Acompanhava cada caso de perto. Lembrei deles. Lembrei dos beijos e carinhos que ganhava e das graças das mães agradecendo por cada ato que eu fazia para e pelas crianças. Eles confiavam em mim, eu não podia os decepcionar. Jurei isso.
Emily mais cedo me perguntara se eu não tinha alguém pra amar, eu disse que tinha. Tinha a todas as crianças que eu cuidava. Ela riu da minha afirmação e colocou seu ursinho na frente de seu rosto risonho que seus cabelos já não podiam cobrir. Você não tem alguém que te ame, que cuide de você assim como você cuida de nós? ...eu não tive palavras, disse que não. Realmente, eu não tinha alguém que cuidasse de mim e não me importava com minha aparência desbotada, afinal eu ganhava o título de Drª da Alegria e um nariz de palhaço quando entrava no hospital. Eu nunca parei para pensar em mim, eu sempre queria o bem de outrem e aos poucos me esquecia. Abaixei a cabeça e uma lágrima insistiu em pular de um dos cantos de meus olhos, ela me abraçou e fez questão de lamber a lágrima. Então eu ri, aquele gesto fez eu ver que alguém se importava comigo e dali todas as crianças vieram pra cima de mim, me abraçaram e imploraram por cantigas e histórias antes dos exames rotineiros. Me compram facilmente com amor.
Mais uma noite, mais um plantão. A diferença é que esse não foi tão tranquilo como o último.
Estava em minha sala e senti como se algo ruim fosse acontecer, saí desembestada pelos corredores sem saber pra onde ir. Algo me chamava em alguma sala, no corredor vi o ursinho jogado e ao entrar Emily estava expelindo sangue enquanto os outros dormiam. Ela tinha piorado e da última vez que analisei o caso ela só tinha tendência a piorar. Ela piorou. Corri com a menina nos braços, ela estava desacordada no quarto de repouso. Sala de exames. Transfusão sanguínea. Quarto de repouso. Seus pais estavam desesperados, ela era tudo para eles. Eu não podia perdê-la, tinha que fazer jus ao meu diploma e até o fim iria lutar por ela, assim como faria pelos outros. Ela estava em observação, ainda não se sabia de onde havia surgido a hemorragia e eu temia por alguma função vital dela. Eu a amava, era algo incomum. Por mais que eu soubesse que não deveria me apegar demais aos meus pacientes, era impossível eu vivia a dor de cada um.
Voltei ao meu consultório para dar alta a alguns dos meus pacientes, eles estavam estabilizados e eu ficava feliz por saber que eles estavam bem, e triste por ter que deixá-los. Eles prometeram voltar e me visitar.
Um chamado de urgência no quarto 318, era Emily. Tentaram de tudo antes que eu chegasse, eu tentei bem mais. Tentei reanimá-la de todos os jeitos, mas ela não tinha pulso e aos poucos eu perdia os meus. Ela dormia como um anjo, tinha uma aura tranquila e um semblante feliz. Ao lado de seu travesseiro estava seu urso com um curativo no coração e tinha meu nome escrito. ANNE. Acho que sei o que ela quis dizer com isso. Junto dele uma fita que ela usava nos cabelos de raio de sol e nela estava escrito: Obrigada por tudo e procure quem te cuide, com amor Emily. Ela parecia saber que ia, mas não me avisara. Ela sabia do que eu precisava e eu não consegui curá-la. Meus olhos se encheram de lágrimas, mesmo que médicos não devam chorar. Abracei seu corpúsculo lembrando de tudo o que aquela menina tão pequena fez por muitos naquele lugar. Com 7 anos ela sabia mais coisa do que eu. Eu só soube dizer adeus meu pequeno raio de sol e sair pelas portas correndo, assim como uma daquelas crianças. E nunca mais larguei aquela fita, sempre a tinha comigo nos momentos mais importantes e até hoje procuro o que ela me deixou escrito por lá.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

eat, pray, love

Ultimamente tenho praticado bastante a parte "eat" de "eat, pray, love", um drama inicialmente de um livro que gerou um longa metragem.
Não gosto, nem me valho muito de comparações mas tenho de admitir que me encaixei com muitas situações desse filme. Odeio livros de auto-ajuda e esse me parecia ser mais um. Talvez eu precise de um.
Fui ao cinema sozinha nesse dia.
Chorei sozinha também.
Não havia como negar aquela cenas. Era eu ou apenas o pouco frustrado de mim.
Comer.
E esse tem sido meu prazer ultimamente.
E por mera semelhança a Itália será meu destino. Palco de uma comilança incessável.
Mais tardar ano que vem.
Aprenderei a arte de comer?
Mas antes disso traga meu sorriso de volta, deixei-o com você e esqueci de pegá-lo.
A arte da felicidade está implícita a tudo, até na saturação.
Faz da fotografia preto e branco que não temos colorida. Mas use somente da tua aquarela e deixe tua marca nela. Resolvi levar de lembrança.
Eu nunca fiquei tão feliz quando lhe tive por perto, sei que não foi nada mas eu estava... feliz.
Clichê, eu sei. Mas descobri um pouco de fato o que era essa tal felicidade que tantos outros proclamam.
Nunca tive um sorriso a postos antes. Era singelo e natural.
Não precisava de motivos para sorrir. Você ainda estava ali.
Eu fui feliz e eu sabia.
Dê-me meu sorriso e então comerei...
Posso continuar a comer ou iniciar outro passo?

sábado, 9 de outubro de 2010

Marinheiro sem lar

A solidão do Naval é contagiante, tortuosa.
Imagino o ranger das escadas mesmo sem ninguém pisá-las.
Tamandaré me guarda.
Escrevo agora o diário de um marinheiro solitário.
Sem vela, sem rumo, sem nó.
O prédio é centenário e sua arquitetura ao mesmo tempo que me deixa admirada, me assusta.
Falo com as paredes. Falo das paredes.
Elas me contam segredos e eu falo dos meus.
Parece que nelas eu posso confiar, pois as histórias irão morrer com o prédio. Já não estarei aqui.
Sentirei saudades, admito. Mas não mais que de você.
Mas ninguém perguntou de você, nem as paredes.
Elas não tem braços para me enlaçar num abraço, então se fazem gélidas junto a mim.
Sem acalantos, a mesma frieza de sempre como já era de se esperar.
Ela sussurrou em meus ouvidos que você partira e me deixara só, e que nada poderia fazer para mudar tal questão. Tudo tornara-se frio e vazio sem ti.
Será assim agora por diante, mas eu já provei dessas palavras antes...
Não sei como terminar isso, ficará assim. Sem final.
Outros sorrisos tomando o lugar dos meus.
Sem suspiros, sem abraços.
Sem teu cheiro, sem teu jeito.
Analogias que não farei mais. Para conforto de meu músculo cardíaco que acelera este pobre e fúnebre corpo, alma.
Eu não senti prazer.
Eu senti conformidade por lhe amar, mas não desisti no 1° momento como tantas outras companhias o fizeram porque me bastava amor. Me bastava amar.
Seu prazer eu fazia questão de descobrir depois e por partes, porque eu lhe desejava. Desejo.
Atração. Desejo.
Eu buscava lhe devorar aos poucos mas fui devorada por outrem.
As estações não demoram tanto para passar.
São apenas 4 e chove outra vez.
A parede gélida me fez calar e parar de pensar.
Sinto um arrepio e finda-se algo interminável.
Adeus não é o melhor que eu posso lhe dar.

túnel

Meu sistema imunológico está baixo.
Baixo pela tristeza, coisa psicológica (repetição por fraquejo emocional).
Estou doente outra vez e mais uma vez verei o hospital.
Ele está cheio de mim, cheio de caras pálidas como a minha.
Pessoas sucumbidas passeiam pelo corredor.
Aquelas olheiras, a dor, esses sintomas contagiam.
Contaminam rápido.
Além de tudo, "stress".
Com 17 eu sofro disso e mais um pouco.
Posso ter um infarto e antes dos 42 é clinicamente provado que ele se dá de forma fulminante.
Eu sempre soube que morreria cedo e nesse caso, seja uma metáfora se você quiser,
"morri do coração".
Mesmo que o adeus seja indigno de você.
Indigno de mim.